Lula, câncer e roda

Fico com a impressão que certas notícias que nos chegam são um prato cheio para o derramamento de toda a violência abafada no peito.

Lula está com câncer. Câncer é um medo contemporâneo, não devemos comer uma lista de alimentos, pois são cancerígenos. Não devemos beber em excesso, nem durante longo tempo, pois aumenta o risco de câncer. O câncer faz parte do nosso dia a dia. Quem não conhece alguém, um parente, um amigo, um amigo de um amigo, que já teve um diagnóstico de um tumor maligno. Muitos morrem, muitos se curam, mas é desnecessário falar que o tratamento é difícil, doloroso.

Bem, o ex-presidente Lula está doente, assim como ele, muitas outras pessoas. A diferença está no valor que damos a vida. Explico: a vida de um ex-presidente vale mais que a de um trabalhador rural que sofre da mesma doença. A vida dos que elegemos como heróis vale mais do que a nossa própria. A vida de um homem com dinheiro vale mais do que aquele que não tem. Seus hospitais são melhores, seus médicos são melhores e o tratamento, a atenção conferida é melhor. Ter dinheiro é melhor do que não ter. Ter poder é melhor do que não ter. É isso? É de fato revoltante a injustiça, e parece ser mais ainda com os sem dinheiro e sem poder. É entristecedor. E tudo isso fica guardado no peito de cada um de um jeito diferente. Uns correm para aliviar, outros batem, outros rezam, outros fazem um câncer. Mas alguns agem por mudanças neste ciclo de injustiças que vivemos, uns atuam por transformações que gerem benefícios para a coletividade. As vezes são silenciosos, por vezes espalhafatosos, mas estão se movendo num caminho que parece contrário a tudo que nos ensinaram, o caminho do bem estar para todos. Todos nós devíamos contar com o melhor tratamento, isso deveria estar a nossa disposição, mas qual a nossa disposição para lutar por isso? Qual a nossa disposição para exigir um sistema de saúde pública de qualidade? Queremos realmente compartilhar hospitais, creches, escolas, com todos?

Acredito que não. Selecionamos aqueles que queremos conviver. Selecionamos… (pagamos por isso, não?)

Toda esta repressão de sentimentos agora gera um ódio verbal contra um homem doente. As doenças não apagam nossos atos, nem a morte. O passado nos acompanha. Crimes, consensos, negligência, abuso, cada um tem o seu, e chega de impunidade.

Leis, leis, leis, vivemos uma existência sem leis. Mais ódio. Mais violência. Mais seleção. Mais ódio. Mais câncer.

O corpo devolve, a mente devolve, o espírito devolve.

Tem um texto chamado Dama da Noite do Caio Fernando Abreu que fala sobre este ciclo programado que vivemos:

Como se eu estivesse por fora do movimento da vida. A vida rolando por aí feito roda-gigante, com todo mundo dentro, e eu aqui parada, pateta, sentada no bar. Sem fazer nada, como se tivesse desaprendido a linguagem dos outros. A linguagem que eles usam para se comunicar quando rodam assim e assim por diante nessa roda-gigante. Você tem um passe para a roda-gigante, uma senha, um código, sei lá. Você fala qualquer coisa tipo bá, por exemplo, então o cara deixa você entrar, sentar e rodar junto com os outros. Mas eu fico sempre do lado de fora. Aqui parada, sem saber a palavra certa, sem conseguir adivinhar. Olhando de fora, a cara cheia, louca de vontade de estar lá, rodando junto com eles nessa roda idiota – tá me entendendo, garotão?

Cuidado comigo: eu sou a dama que mata, boy. Já chupou buceta de mulher? Claro que não, eu sei: pode matar. Nem caralho de homem: pode matar. Já sentiu aquele cheiro molhado que as pessoas têm nas virilhas quando tiram a roupa? Está escrito na sua cara, tudo que você não viu nem fez está escrito nessa sua cara que já nasceu de máscara pregada. Você já nasceu proibido de tocar no corpo do outro. Punheta pode, eu sei, mas essa sede de outro corpo é que nos deixa loucos e vai matando a gente aos pouquinhos. Você não conhece esse gosto que é o gosto que faz com que a gente fique fora da roda que roda e roda e que se foda rodando sem parar, porque o rodar dela é o rodar de quem consegue fingir que não viu o que viu.

Saúde!

Até!

Vivi Bezerra